Um dragão chamado Alcides
“Uma pessoa instigante a menos no mundo.” A manifestação de um colega pelo MSN, agora de manhã, foi a primeira de muitas que escutei ao anunciar a passagem do impassável, o velório do inveloriável, a morte do imorrível, o fim do infindo. Sou um privilegiado. No Dia dos Pais de 2007, um domingo quente, fomos eu, o jornalista Sérgio de Sousa e o fotógrafo Rafael Cavalcante à humilde casa do velho poeta entrevistá-lo. A primeira surpresa: ele não estava em casa, não usava celular e estava no Mercado São Sebastião fazendo as compras suas de todos os domingos. Sua bela filha, pois, recepcionou-nos e pediu que nós o aguardássemos um pouco. Sorte que Alcides voltou logo e nos recebeu. A segunda surpresa: ele havia esquecido que tinha marcado e confirmado a entrevista. Nossa profissão é fenomenal mesmo, nos faz estar próximos a pessoas fantásticas, no sentido real e literário. Daí em diante, são incontáveis as surpresas que nos trouxe sua voz cansada e bodejante. Nem a dificuldade de transcrever as fitas tirou a magia e o encanto da história desse sertanejo sofredor, que nos levou seu corpo, mas nos deixou sua alma, seus versos e suas idéias. Por volta de 12h50min de hoje, 2 de junho, foi decretado morto o poeta "maldito" do bem, após ser atropelado por uma motocicleta no Centro de Fortaleza, no sábado, 31 de maio. Merda de morte essa!
Segue, então, a entrevista com José Alcides Pinto, publicada na edição de setembro de 2007 da Revista geoBússola da qual fomos criadores e somos entusiastas do seu resurgimento.
Por Andreh Jonathas e Sérgio de Sousa
Bateu três vezes na madeira. Homem decidido (assumidamente anti-acadêmico), não se permitia aceitar aquela sugestão. E, assim, a Academia de Letras não faria parte da história do poeta, ficcionista, teatrólogo, ensaísta, crítico literário, memorialista, artista plástico e jornalista. Tudo isso em três nomes: José Alcides Pinto. Assim como são três a Santíssima Trindade, assim como são três a trilogia amaldiçoada, assim como são três as etapas da existência humana: nascer, reproduzir e morrer. E isso o faz pensar na vida, o faz viver o sexo, o faz temer a morte – temáticas que percorrem as veias lineares de seus textos.
Em sua sala habitada por móveis coloniais, o computador com web cam faz o contraste. Mas esse, ele repudia: prefere a caneta e o papel. Porque, enfim, escrever, ele escreve até sentado no vaso sanitário. Ali, naquela sala, o tempo parecia não querer passar. Nasce o sol, queima o sol, põe-se o sol: são sempre 12h31min, como informa o relógio antigo na parede. Tal qual o relógio, o escritor também luta contra o tempo que corre e desgasta. Já são 85 anos, 55 dos quais dedicados à literatura. E ele atravessa esses números sendo um dos autores cearenses mais ativos da atualidade. Afinal, ele nasceu para isso, assim estava escrito: “O destino parece ser anterior ao mundo, tão forte é o destino”.
Os meios podem o fazer um tradicional, mas os fins, sem dúvida, o fazem um moderno – ou melhor, um transgressor. Como ele mesmo justifica, ancorando-se
Mas a pecha de maldito não o impediu que se considerasse um filho de Deus, perenizando tal auto-definição no epitáfio já pronto, gravado na lápide do túmulo que o espera em sua terra natal. “A minha obra que é demoníaca, mas eu, não. Minha essência é divina”, esclarece.
Polêmico? Sim, ele é, e gosta. Assim como a barata de Franz Kafka e o escaravelho de Allan Poe, o dragão de Alcides Pinto surgiu pra intrigar. Mas isso, sem esforço: o homem que traz o satânico como tema e o erotismo como religião afirma apenas seguir a sua natureza. Se a natureza é polêmica, que seja. Se é pra chocar, que se choquem!
A entrevista teve início às 11 da manhã do domingo dos pais de 2007 e durou cerca de uma 1 hora e 5 minutos
José Alcides Pinto>Pode perguntar o que quiser. Já está gravando aqui?
Bússola>O senhor é filho de capitão de tropa de cigano com uma descendente de índio tremembé. Quais são os resquícios dessa mistura em sua personalidade?
J.A.>Eu acho que duas raças misturadas assim dão mais riqueza à personalidade da criatura do que se for de uma família tradicional. Aí, deixa de ser tradicional, são duas vertentes diferentes e duas vertentes completamente originais: ciganos e também uma família tradicional dos meus pais, que veio de Portugal. Eu sou descendente de português. Meu pai nasceu em Cascais, Portugal. Quando vocês saírem daqui, peguem aquela lousa e olhem aquela lousa [aponta para a lápide sepulcral encostada na parede sala contígua]. Naquela lousa ali, estão a história dos Verdes Abutres da Colina. Dessa lápide aí foi que eu escrevi Os Verdes Abutres da Colina, que é um volume da Trilogia da Maldição: O dragão, Os verdes abutres da colina e João Pinto de Maria: biografia de um louco.
B.>E em relação aos resquícios dessa mistura em sua personalidade?
J.A.>Então essa coisa mesclada que você acabou de me dizer, de raças, de eugenia, de genética, tudo isso dá à personalidade da pessoa um alcance muito singular. Choro quando tenho vontade de chorar, rio quando tenho vontade de rir, escrevo dia e noite sem parar, escrevo sem condições de escrever, quer seja na privada, seja no chão, nunca tive uma secretária. Tenho horror a computador, só escrevo à mão ou à datilografia, e datilógrafo com a máquina Remington... quem faz no computador é minha filha [Jamaica Pinto], eu escrevo e ela digita, aí imprime. Ela digita muito bem. Minha filha é uma artista, eu vou já lhe mostrar fotografias dela. Já apareceu aqui, no Rio de Janeiro... Ela só não ficou contratada porque eu tenho uma fazendazinha aqui e se ficar outra pessoa roubam tudo, levam tudo e acabam com a fazenda.
B.>O senhor acha que isso dá uma singularidade à personalidade?
J.A.>Claro que dá. Não é uma pessoa do padrão comum. Muda. Muda a personalidade. Muda até a fé da pessoa. Qual é a religião dos tremembés? Não tem religião. Já do lado de Portugal tem, são da religião Católica Apostólica Romana, do meu pai né? E quando uma coisa interfere, se enriquece, se enriquece pra melhor. Pode perguntar o que quiser. Eu respondo a tudo, não tem problema.
B.>Já falando dessa mistura, das religiões, quando são suas crenças?
J.A.>Eu só tive uma crença. Ninguém tem crenças, pra cada indivíduo só tem uma crença. Isso eu já estou lhe dando uma lição como professor já. Eu detesto ser professor. Só tem uma crença, só crê em Deus, se você acredita em Deus; Você crer em Buda, Lutero ou Ghandi... só que em uma, você não pode ter duas crenças.
B.>E qual é a sua?
J.A.>A minha é a religião católica, Deus. Apesar de ser considerado poeta maldito, mas aí é outra atitude da pessoa, isso é uma atitude literária, não é uma atitude do meu ser. Eu sou místico, profundamente místico, tanto que eu pago promessa.
B.>O senhor paga promessas?
J.A.>Eu passei o ano inteiro - eu era professor de Comunicação Social – passei o ano inteiro de manto, pagando promessa para os meus alunos, ninguém dizia nenhuma piada, pelo contrário.
B.>Que tipo de promessas?
J.A.>Passar o ano inteiro trajado de São Francisco.
B.>E hoje em dia, o senhor ainda paga promessas?
J.A.>Hoje em dia eu tenho a minha fazenda, onde eu mandei fazer meu túmulo, tudo público, para não pagar nada: “Aqui jaz o poeta José Alcides Pinto, filho de José Alexandre Pinto e Maria do Carmo Pinto, orai por ele.” Alguma coisa assim. Então eu sou profundamente místico, místico no estado selvagem, um místico pecaminoso, um místico que acende o pecado do mundo. O pecado é da carne, o misticismo é da alma.
B.>Que tipo de sofrimentos você passou na sua infância e que marcas isso deixou no senhor?
J.A.>Senhor, não! Eu tenho horror a quem me chama de velho. Eu não sou velho, minhas idéias são novas! O que importa são as idéias, não é o corpo. Vá pra baixa da égua! Bom, preste atenção aqui. Eu acho difícil uma pessoa ter sofrido mais do que eu. Acho que o sofrimento só faz prolongar a vida. Você nota o seu sofrimento e desiste de viver, ou então, cria uma crosta e emperdeniza, assim você passa por qualquer sofrimento. Porque se sai de uma batalha, não vai ter medo de tiro. Não pode ter medo de tiro nenhum.
B.>E por que o senhor sofreu tanto?
J.A.>Porque os meus pais eram paupérrimos, não eram pobres, não. Mas tinham uma dignidade fora de sério. Uma coisa é a pobreza, outra coisa é a miséria. Meu pai nunca foi miserável. Nós aqui, pobres, não somos miseráveis. Miserável é quem tá no morro assim pedindo esmola, miserável é quem mora em barraco e a água vem e perde tudo... mas o meu pai era tão pobre – ele trabalhava como comboieiro – ele alugava os burros, os animais porque não tinha animal: “Tá aqui os animais. Alugava pra pagar depois.” Ficava pagando com farinha... Então o seguinte, meu pai era paupérrimo, mas como ele tinha muita dignidade, era muito honesto, todo mundo confiava e vendia fiado no povoado. Eu nasci em uma aldeia chamada Alto dos Anjicos, depois que essa aldeia passou a ser chamado de São Francisco do Estreito. Hoje não é mais aldeia, é um povoado, um distrito de Santana do Acaraú, muito conhecido, como está na minha biografia. Mas, naquele tempo, existia também umas vinte famílias, era quase uma aldeia. Meu pai era uma das pessoas principais, porque era muito destemido, muito trabalhador e muito honesto. Acontece que chegou um tempo, não se que seca foi, mas se acabou tudo no povoado, as coisas fecharam tudo porque não tinha a quem vender... nós passávamos muita fome. Chegou um tempo em que bofe [explicar?] era a coisa mais barata que existia. Meu pai comprava o bofe pra gente comer, metia o bofe nas cinzas – bofe só se aça em cinza – ele incha total e a gente comia. Só isso! Mas chegou um tempo tava tão... com a família, com dezessete filhos, sabe o que ele fez? Pegou minha mãe chorando lá, pegou eu e o meu irmão Geraldo - eram seis filhos homens – tudo morrendo de fome, atravessou o Rio Acaraú, com a minha mãe ao lado chorando, e foi deixar até a estrada Real, uma estrada que ia até Sobral. Meu pai deixou nós três debaixo do juazeiro, no sol e nós morrendo de fome, para quem quisesse pegar podia levar pra criar. Ninguém levou ninguém. Era uma seca muito grande, quem ia se incomodar com criança? À tarde, meu pai foi buscar os meninos pra levar pra casa. Isso foi uma visão premonitória que ele teve que ninguém ter levado e tinha que voltar pra casa. E passando fome, e levando, muita fome, muita fome, foi vivendo, algumas crianças morreram, morriam de fome porque não tinham o que comer.
B.>Quantos morreram de fome?
J.A.>Três ou quatro. Eu tinha seis, sete anos e me lembro de tudo isso. Passou essa fase, aí e eu continuei vivendo lá. Depois apareceu uma professora, era uma negra, graças a Deus que era uma negra, mais inteligente, não tinha nem o primário, mas tinha uma intuição. Se você não tiver intuição, não pode ser poeta. se o ser humano não tivesse intuição, não teria inventado o avião. A intuição é mais importante que a inteligência. Então, eu era muito intuitivo. Presta atenção! Meus pais voltaram a viver de qualquer maneira, eu fiquei estudando com essa professorazinha, tinha que ter uma palmatória: ‘Venha cá’. Dez, doze bolos, as mãos ficavam tudo inchadas. Apanhei muito de palmatória, eu era muito danado, botava aquele espelhinho e olhava a calça da professora. Muito danado. Outros casos, não vou contar, não. Se vocês quiserem saber outros sofrimentos que eu tive, eu vou dar um livro meu que vocês nunca leram: Manifesto Traído: Depoimento / Memória. Mas é uma memória romanceada, porque eu tenho horror a negócio de romance memorialista. É a minha memória, mas romanceada, transfigurada, para não ficar tipo reportagem, como vocês estão fazendo.
B.>Tem um pouco de ficção, é?
J.A.>Tem que ter. Todo romance é ficção, mas não deixa de a história estar aí. Toda a história é uma grande mentira. Não existe uma história da História universal que não seja mentirosa, mas nem por isso deixa de ser verdadeira. A mentira não faz bem nem mal para ninguém, é apenas uma conspiração. Conspira contra si mesmo. Por exemplo, Carlos Magno, você ouviu falar
B.>E, Alcides, você mente muito?
J.A.>Não, eu não consigo mentir.
B.>Não consegue mentir?
J.A.>Não consigo mentir, não consigo roubar. Consigo inventar, criar, transfigurar as palavras.
B.>Como aconteceu de o senhor, de você tornar-se escritor?
J.A.>Ninguém se torna escritor, você nasce escritor. Você nasce escritor, você nasce cientista, você nas com vontade de voar, e é um aviador. Ninguém muda o seu destino, meu filho. [Toca o telefone]. Deixa eu pegar isso aí, posso pegar? [ele atende ao telefone]
B.>O senhor falava que ninguém muda o seu destino.
J.A.>Tem uma frase genial, não porque seja dita por mim, sabe o que é: “Parece que o destino é anterior ao mundo. Tão forte é o destino que ele é anterior à vida”. Assim é o destino. [bate no chão] O destino parece ser anterior ao mundo, tão forte é o destino.
B.>Então o senhor nasceu escritor?
J.A.>Nasci. O sujeito nasce escritor. Ninguém se forma escritor. Agora, você pode aperfeiçoar sua literatura, sua estrutura, linguagem, forma, ter a consciência do que quer escrever, mas para isso, você para você ser escritor, você tem que nascer intuitivamente escritor. Aos oito anos de idade, morando no interior, eu pegava carvão – não tinha lápis naquele tempo, nem papel – a gente escrevia nas paredes, imitando Castro Alves, imitando Fagundes Varela, imitando Augusto dos Anjos, escrevendo nas paredes.
B.>Com oito anos de idade imitando Augusto dos Anjos?
J.A.>Com oito anos de idade. Eu lia tudo isso, meu pai era escritor, rapaz. Meu pai era pobre, mas dizia a missa lá com os padres lá do povoado. Ele era autodidata. Meu pai aprendia a Geografia, a História ouvindo os homens grandes falarem, os políticos do lugar. Ele ficava escutando, ele percebia tudo. Os grandes escritores são autodidatas. Monteiro Lobato era autodidata, Graciliano Ramos era autodidata.
B.>E o senhor?
J.A.>Não, eu não. Infelizmente, eu tenho três cursos superiores, infelizmente.
B.>Mas o senhor...
J.A.>O senhor tá lá no Céu, lá
B.>Desculpa, você percebeu que era escritor antes de estar no curso superior...
J.A.>Ai, meu Deus, eu percebi que eu era escritor quando eu nasci, meu filho, quando eu comecei a escrever nas paredes, comecei a ler Castro Alves sem saber nem o que era Castro Alves. Mandava a professora ler para eu ouvir. Tinha uma vontade louca de ser escritor. Tanto que tinha, que larguei tudo pra ser escritor [ele abandonou dois empregos públicos]. Larguei tudo, tudo, fiquei sem um tostão. Fui para o interior criar cabra no interior, fiquei quatro anos sem vir a Fortaleza...
B.>Não ficou com medo de tomar essa decisão?
J.A.>Não, não, nunca tive medo. Eu tenho medo de brigar, de matar pessoas, fazer o mal a alguém.
B.>Alcides, os seus textos se assemelham bastante ao realismo-fantástico e ao regionalismo traduzidos por Gabriel Garcia Márquez. Mas também vemos temáticas bastante comuns a Poe, Baudelaire e Lautréamont, como a preferência por questões mórbidas, escatológicas essencialmente românticas...
J.A.>É porque são os poetas chamados malditos, são os anjos iluminados. Mas por quê? Cada poeta imita, gosta de Castro Alves. Não existe imitação, existe confluência. Escritor não imita ninguém, é a confluência. As pessoas se identificam. Identificação é uma coisa fora de influência. Influência quem tem é o copista.
B.>Como você foi construindo essas identidades?
J.A.>À proporção que fui lendo e gostando dos poetas malditos. A minha tendência era gostar dos poetas malditos, que são os que contestam a vida. Camus [escritor e filósofo argeliano] dizia o seguinte: “Toda vida consciente é uma revolta”. Todo homem consciente é revoltado.
B.>A construção do poeta maldito tem a ver com revolta também?
J.A.>Se eu aceitasse a sociedade não seria um poeta maldito, seria Artur Eduardo Benevides, poetazinho de gabinete. Qual a pessoa consciente que aceita a situação que está vivendo?
B.>E o que mais que revolta?
J.A.>É a hipocrisia, é o descaso político, é o descaso até religioso.
B.>Voltando à literatura, por que essa interposição entre o sagrado e o profano em seus textos?
J.A.>É porque a vida é assim. A vida é o lado sagrado e o lado profano, é o lado do bem e do mal. Isso já vem de Adão e Eva, isso já vem de Caim, que matou Abel. Não existe vida sem o bem e o mal, não existe. Os próprios santos – São Francisco de Assis era muito perverso. Se você ler esse meu livro – foi lançado agora, vocês não assistiram, na Oboé [ao lançamento]–, é o seguinte, são as duas partes da vida. Toda minha obra é autobiográfica, começa por isso. O próprio personagem é o José Alcides, sou eu. Sagrado e divino caminharam sempre juntos, nunca se separaram. Tem o demônio e o anjo. Não pode existir céu sem inferno, meu filho. [bate no chão] Vá pra baixa da égua! [risos]
B.>Mas você...
J.A.>Peraí [corta a pergunta novamente]! Você não sabe o que é fazenda! Os ventos carregam tudo e fica tudo seco, eu acho isso lindo, o lado demoníaco da vida. O sítio não, o sítio é sempre verde, não tem sentido, não tem. A vida é a desgraça, miséria. Depois, a ressurreição de tudo.
B.>O senhor se recolhe para escrever...
J.A.>Não, eu escrevo até na privada, mas quando eu vou para a fazenda, eu vou mais ler do que escrever...
B.>A pergunta é...
J.A.>Não, a resposta é essa! [gargalhadas] Eu escrevo em qualquer lugar. Tem gente que tem que ter o seu gabinetezinho direitinho, a sua hora de comer, de dormir, eu não tenho isso. Eu escrevo a madrugada toda. Há poucos dias eu fiz num sei quantas páginas em dois dias, agora, depois eu vou capinar o livro.
B.>O senhor escreve qualquer momento do dia?
J.A.>Principalmente, à noite. Mais à noite. As vezes, estou deitado, com sono, mas me levando com uma idéia na cabeça, aí vou até de manhã.
B.>A impressão que fica é que a tristeza e a solidão são inspiradoras. Elas são essenciais ao um escritor?
J.A.>É tudo na vida. Eu só escrevo em estado de desespero. Ninguém pode escrever com prazer. O prazer foge da literatura. Quem escreve com prazer é Paulo Coelho, é uma merda de escritor, não vale porra nenhuma, por isso mesmo tem recebido de tudo aí, aquilo é uma questão de fenômeno e é tudo passageiro. Mas, olha aqui. Eu estava na Praia das Fontes: – Você já leu Paulo Coelho? – Já li essa merda, vai te embora, vai te embora, vai... [gargalhadas].
B.>Você já falou que a vida é diabólica e sobrenatural. Ainda pensa assim?
J.A.>Penso assim. Continuo pensando. O que é que não é sobrenatural no mundo? Eu já tive sonhos fabulosos com família minha que tinha morrido, e vi depois. O sobrenatural é o que é escondido, o lado divino, o surpreendente da vida. O outro é o lado que nós conhecemos. Muita coisa que eu escrevo, eu desconheço. Por exemplo, uma frase que eu escrevi e nunca pensei que escrevesse: “Maçã, brilha-se pelo lado oposto dos ventos”. Você sabe dizer se o vento vem do lado oposto? Eu não sei, mas eu escrevi isso, tá certo. Às vezes se assemelha a uma metáfora, mas não é. É aquilo que desconhecemos e, de repente, está dentro de nós, de repente se desenha em nossa frente, de repente interfere no que escrevemos.
B.>A morte é uma temática bastante presente em seus escritos. O que ela significa para você? Você tem medo da morte?
J.A.>Tenho pavor. A morte sempre foi uma constante desde os oito anos de idade, como o sensualismo sempre foi uma constante, que já vem dos meus pais, dos meus avós. Meu pai com 87 anos de idade ainda teve um filho. Quando é genético não se acaba. É como dizia Drummond: “Se é de amor, então que se quebre”. Mas são raras pessoas.
B.>Mas qual é o significado mais forte que tem a morte pra você?
J.A.>Não existe significado maior do que a morte. É até uma pergunta, desculpa eu lhe dizer, é uma pergunta ingênua, nunca faça isso pra ninguém. Existe coisa mais forte do que a morte? É o próprio “obvio lulante”. O quê que é mais forte do que a morte? O que é que pode nos aterrorizar mais do que perder nossa vida neste momento que nós estamos conversando aqui?
B.>Mas a morte pode ter vários significados.
J.A.>Me diga um.
B.>Tem gente que acha a morte bela.
J.A.>Quem, quem? Mentira [batendo a mão no chão]! As pessoas dizem ou então se convencem disso.
B.>Os românticos não achavam a morte bela?
J.A.>Não, nunca acharam bela, os românticos! Você esquece de uma coisa: a literatura é uma parte artificial. Quem constrói uma mesa, faz uma parte real. A alegoria da mesa é artificial. [Nesse momento, entra uma moça procurando por Alcides e a entrevista é interrompida por cinco minutos].
B.>A gente estava falando da morte, mas você entrou no assunto do erotismo também. Fale-nos um pouco sobre isso?
J.A.>O erosensualismo. No curso de Comunicação Social, eu dei muita aula sobre erotismo. Para mim, o erotismo é uma religião. Sensualismo! Sensualismo é a beleza. A mulher pode ser bonita de rosto, mas se é uma mulher fria, você não tem interesse nenhum nela. O sensualismo bate no olho... se fosse uma mulher gorda [refere-se à moça que tinha entrado há pouco tempo em busca de trabalho como empregada doméstica], não teria entrado aqui. Eu tenho horror a mulher gorda. Eu gosto de mulher magra. Você se abraça, você sente o calor dos ossos batendo no seu corpo. É a própria vida, é a própria natureza. Mulher gorda é uma aberração da natureza, eu considero. É questão de estética. Toda magra tem sua estética própria. A mulher gorda não tem estética nenhuma. Ela bota um vestido lindo e fica mais feia ainda. Mulher gorda é assim, poeta. Eu tenho irmãs gordas, não estou falando das gordas não, tô falando da minha natureza, da aceitação da minha natureza. Eu não tenho preconceito, não.
B.>Ser denominado de Poeta Maldito já lhe incomodou alguma vez?
B.>E o senhor gosta de ser polêmico?
J.A.>Não é que eu gosto, a minha natureza é polêmica. E eu gosto disso. Eu sou obrigado a ser polêmico, por posição da minha própria natureza. Graças a Deus. O que não gosto é de ser capacho, a pessoa que tanto faz quanto tanto fez, pra agradar os outros.
J.A.>Se já choquei? Muitas!!! Quando eu fundei o movimento de arte concreta aqui quase que me matam, aqui. Várias críticas. Pá! Rebati todas elas! Do Pará veio uma caravana aqui pra me execrar aqui, matar o demônio concretista. Os homens puritanos daqui...
Alcides, que conflitos existenciais você ainda traz consigo?
J.A.>Todos os conflitos existenciais ainda trago comigo, desde a minha mocidade. Não consegui me livrar de nenhum deles. Eles acompanham a minha existência, a minha arte, a minha poesia, acompanham as minhas atitudes, acompanham até os meus amores. Se você me perguntasse: - Que defeitos você tem? - Eu num acho que eu tenho defeitos, eu tenho conflitos, angústias existenciais. A vida é uma angústia existencial. A vida é o que há de mais absurdo e mais belo do mundo. E a beleza é uma coisa trágica. A beleza é trágica! De repente, desanda tudo. Isso é que é conflitante. Eu guardo essas coisas dentro de mim, porque sou um ser receptivo à beleza, receptivo à natureza humana, à comunhão humana, à integração humana, tudo isso interage comigo. O que é belo interage comigo. A vida é bela, mas é trágica. E é uma das coisas mais difíceis do mundo.
B.>Você não é membro de nenhuma academia da letras...
J.A.>Graças a Deus! [cortando a pergunta] Ah, peraí! [bate três vezes na madeira do móvel ao lado]
B.>Por quê?
J.A.>Porque a minha obra é antiacadêmica, meu filho! Como é que eu vou entrar pra uma academia assim?
B.>Mas já foi convidado...
J.A.>Várias vezes, rapaz! Ave Maria! Quando fui convidado pra primeira academia, Caio Martin me levou lá ao Diário do Nordeste pra dar entrevista, dizendo que eu era candidato sem concorrente. Pelo amor de Deus! Saí de lá e vim m’embora. Eu num quero academia, eu num quero status, eu num quero nome de rua. A biblioteca de Santana do Acaraú tem o meu nome, mas aí eu não posso fugir.
B.>Você foge do reconhecimento?
J.A.>Fujo, sempre fugi! (...) Eu gosto de ser ignorado. Ser ignorado por todo mundo. Porque o que há de mais belo é você viver sua vida isolado. Ninguém morre por ninguém, cada um morre sua própria vida. Amizade é assim: se você puder ter cinco amigos, nunca tenha dez. se puder ter quatro, melhor ainda! Não existe amigo! No dia que você passar na miséria, pedindo esmola, ninguém vai lembrar de você. São poucas as pessoas que têm a sensibilidade de ajudar. Então, se puder ter só cinco amigos, tenha. A própria família pode ser. Eu tenho um romance que diz assim: “A família é pau que fode o sujeito”. Porque é só a família que atrapalha a sua vida! Eu tenho um irmão que é podre de rico e num quer nada comigo nem com mais ninguém. A minha família é muita desunida, num sei se é essa coisa de mistura de índio com num-sei-lá, essa raça assim... (nesse momento, ele pára pra conversar com a jovem pretendente a vaga de empregada. Antes de se despedir dela, ele a pergunta qual é a sua religião. Ao ouvir que ela é da Igreja Universal, comenta com os repórteres: “essa não vai dar certo!”).
B.>O que falta pra termos novos grandes escritores cearenses?
J.A.>É quase irrespondível isso. Pra ter grandes escritores cearenses não precisa época, num precisa status social, precisa talento. Mas nós já temos já um passado de grandes escritores cearenses. Temos José de Alencar... Raquel de Queiroz não é lá grande escritora não, é uma grande cronista, não propriamente uma escritora, ela não é uma poeta. não pode compara-la ao Oliveira Paiva, ou a Domingos Olímpio, Antônio Sales, Juvenal de Galeno, grandes escritores. No passado, nós tivemos melhores escritores do que agora. Pronto, ta respondido! Ultimamente, nós temos uma crise, na poesia e na ficção.
B.>Mas o senhor se considera o maior poeta da América Latina...
J.A.>Não, é brincadeira minha [risos]. Eu gosto muito de brincar. Eu sei o alcance de minha obra. Eu sou o alcance de minha obra. Agora, um rapaz disse ai no jornal: “Você é um gênio cearense”. O que é que eu posso fazer? Já disse, ta dito.
B.>Alcides, você tem 55 anos de literatura. O que é que ainda falta?
J.A.>O que ainda falta é a vida. O que ainda falta é que Deus me dê a inspiração de eu continuar vivendo e escrevendo. Acabei de escrever um novo livro agora, para um concurso. Cem páginas! Eu faço isso em uma semana!
B.>Fala sobre o quê?
J.A.>Poesia. É um livro de poesia.
B.>E o que essas poesias falam?
J.A.>Falam de amor, de morte, de mistérios. Fala de todos os elementos da vida, pelos quais todos nós vivemos e lutamos. Pela fome, pela miséria, o lado social, o erotismo, que nunca perdi e não vou perder nunca, tem uns que são sensualíssimos...
B.>Pra terminar, voltemos à questão da morte. O que diz mesmo o seu epitáfio?
J.A.> “Aqui jaz o poeta José Alcides Pinto. Filho de José Alexandre Pinto e Maria do Carmo Pinto. Um servo de Deus. Rogai por ele”. Simplesmente assim.
B.>Você acha que isso o define?
J.A.>Me define completamente. Sou servo de Deus, não sou do diabo, demoníaco. A minha obra que é demoníaca, mas eu, não. Minha essência é divina. Tenho muito orgulho de dizer isso.
B.>Servo de Deus. Você acha que segue os seus ensinamentos?
J.A.>Eu sirvo, dentro das minhas possibilidades, eu sirvo. Eu não vou à missa todo dia, mas devia ir. Eu não posso, se minha natureza é assim.
B.>Alcides, desde o começo, quando você começou a sua vida literária, você fugiu de certos padrões literários, do tradicionalismo, quando surgiu com o Movimento Concretista aqui. Como é sua relação com o tradicional? Você foge dele?
J.A.>Sempre fugi, desde criança. Sempre fui uma pessoa que não aceita o tradicional, se eu sou criativo! Tem que criar sempre! A minha linguagem é criativa, a minha estrutura é criativa, os meus anseios são parecidos com os de Rimbaud, de Lautréamont, de Kafka.
B.>De idéias antigas, você foge...
J.A.>Sim, sim, a não ser as clássicas, que você tem que aceitas. Porque os clássicos são antigos e novos. Camões é mais novo do que eu! É tão moderno quanto Fernando Pessoa. O que é grande não envelhece.
0 Comments:
Post a Comment
Subscribe to Post Comments [Atom]
<< Home