Tuesday, April 08, 2008

Quanta coisa cabe num beco




Muito movimento num espaço restrito. Mas que ninguém reclame, pois ele cumpre bem sua função. Afinal, ele não é uma rua. É apenas um beco, um lugar de passagem. Como a ponte, serve somente para atravessar. Isso se ele não fosse o Becco do Cotovelo, em Sobral, a 230 km de Fortaleza.

Na movimentação do centro da cidade, o passo apressado da população encontra no Becco do Cotovelo não apenas um caminho mais curto, mas também o próprio destino. Pagar contas, fazer chaves, merendar, comprar revistas, revelar fotografias, cortar cabelo, fazer a barba: tudo isso pode ser feito nas bancas, loterias, lanchonetes e vendedores ambulantes do Becco.

Ele é chamado de coração da cidade conhecida como Princesinha do Norte. Um coração delicado, de apenas 100 metros de extensão, mas muito pulsante e de língua bem afiada. É parada obrigatória para quem quer se atualizar sobre os acontecimentos e palco das mais ferrenhas discussões sobre política, esportes, atualidades e fofocas. E olhe que ele não foi mal-criado, não.

O Becco do Cotovelo foi cuidadosamente arquitetado e construído em 1842 para facilitar o acesso dos pedestres entre as ruas do Largo do Rosário, construídas sem alinhamento. Aos poucos, foram se delineando as vias, que ligavam o espaço urbano ao núcleo inicial da povoação de Caiçara, de onde se originou Sobral, à Praça da Igreja Matriz.

Óculos comunitários

Expedito Vasconcelos, presidente da Associação dos Amigos do Becco, mantém um livro com o registro dos visitantes ilustres. Muitos políticos passaram por lá durante campanhas eleitorais, quando as discussões no Becco ficam mais acirradas. Entre as assinaturas estão as do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Tasso Jereissati, Ciro Ferreira Gomes, Mauro Benevides, Juraci Magalhães, Leonel Brizola, Heloísa Helena, o jornalista Lustosa da Costa, a escritora Rachel de Queiroz, o cantor Falcão... E não basta rubricar. Expedito explica que os visitantes respondem perguntas no livro e assinam suas respostas.

Esta espécie de calçada da fama está exposta em fotografias no Café Jaibaras, ponto de encontro no Becco do Cotovelo há 55 anos. Lá tem cafezinho, jornal e amigos passando pela calçada. O cliente se sente no aconchego do lar. A diferença é que tem de ler o jornal em pé. Expedito conta que passou a fixar os jornais no mural por perceber que a maioria dos sobralenses não tem o hábito de comprar jornais. Os leitores conferem as notícias de Sobral e da Zona norte do Ceará, e o Café Jaibaras oferece como cortesia os óculos comunitários, para auxiliar na leitura. Há mais jornais em Sobral do que eu sabia, pensei. “O povo traz tudo pra distribuir no Becco. É onde você encontra todo mundo”, explica Expedito. Olha! O próprio Becco é o protagonista de algumas reportagens.

Prêmio e roda de capoeira

No sábado, dia de maior movimentação no centro comercial da cidade, o Becco do Cotovelo é palco da transmissão ao vivo de um programa de rádio local. O apresentador e os convidados ocupam uma calçada elevada e o público os acompanha atento, dividindo o espaço com pessoas que seguem para as lojas vizinhas. Opa, afasta um pouco mais que vai começar uma roda de capoeira. Uma roda de capoeira num beco? Isso mesmo.

No Becco do Cotovelo, acontecem manifestações, comemorações de dias dedicados a profissionais, campanhas educativas, prestação de serviços de saúde etc. Naquele sábado, foi anunciado o Prêmio Imprensa, que conferiu o resultado da votação feita numa urna eletrônica instalada no Becco, para escolher os profissionais de destaque nos jornais e rádios de Sobral. Quem passasse por lá, podia votar.

Expedito Vasconcelos enfatiza que qualquer pessoa pode passar no Becco, hoje em dia, porque ali é um lugar de respeito. “Antigamente, há uns 40 anos, as mulheres evitavam andar no Becco, pra não ser alvo de cantadas e coisas do tipo. Mas hoje o povo respeita, tem mulheres que trabalham lá... Hoje não existe mais isso, não”, enfatiza. Mas ele também não nega alguns fatos. “Inclusive, eu namorava uma menina na época, e pedia a ela pra não passar no Becco”.

Só não fique calado

Alguns vendedores idosos montam e desmontam diariamente bancas de revistas e discos antigos. Um LP da Xuxa chama a atenção de nostálgicos, ainda que caído num canto do chão. No primeiro plano, chamando mais atenção que ele, estão publicações de mulheres peladas com capas já quase sem cor.

As filas nos balcões de recebimentos de contas ocupam a estreita largura do Becco e quase cobrem a entrada das outras lojas. Mas aperta daqui, pede licença acolá, e conseguem passar ciclistas empurrando bicicletas, pessoas indo para várias lojas e outras indo para lugar nenhum. Estão apenas aguardando, em pé, que o sol pare de bater nos bancos para que possam, enfim, sentar-se.

Mas a tranqüilidade de ficar de papo pro ar é só pra quem tem a consciência limpa. “Geralmente, não passa no Becco quem tem algum problema, como dívida, ou levou chifre, e tem medo de passar e ser falado”, explica Expedito. Afinal, o povo obedece direitinho ao lema: “Fale bem ou fale mal, só não pode é ficar calado no Becco do Cotovelo”.

“Por favor, você pode abrir essa caixinha pra mim?”, convido um rapaz que vai passando na calçada do Café Jaibaras. “Não!”, responde incisivamente. Ele já conhecia a pegadinha montada para pegar os curiosos. Tento mais uma vez, mas ninguém quer sair na foto como o maior fofoqueiro do Becco.

Tem gente que marca encontro no Becco, e outros que se encontram sem combinar. Ao final de uma manhã, conto um saldo de ter conversado com dois amigos de infância e dois ex-professores, além do fotógrafo que fez meu álbum de 15 anos. O estúdio dele continua no mesmo endereço, depois de alguns muitos anos. A atendente da papelaria onde eu passava depois da escola também ainda é a mesma.

Entre os cartões-postais à venda à porta da livraria, o Becco sorri todo iluminado, entre outros pontos turísticos de Sobral. Ele havia posado para uma sessão de fotos à noite, porém vazio. À luz do dia, com a luz natural e a movimentação que faz dele um lugar peculiar, é muito mais bonito.

Por Claudiene Costa
Fotos Claudiene Costa


2 Comments:

At 7:42 AM, April 09, 2008 , Blogger Andreh Jonathas said...

Se toda cidade nossa começasse a se preocupar em manter um mínimo de tradição do seu próprio umbigo, qualquer que seja esta, o Ceará perderia o carma de cidade sem memória!
Belo texto, Claudiene

 
At 12:15 PM, April 09, 2008 , Anonymous Anonymous said...

Olha, o sábado, no Becco, com o programa de rádio do Ivan Frota, é imperdível. Comemorei há 3 anos, lá, os meus 50 anos, quebrando o tabu.
É bom demais ouvir o seu Luis Torquato, o homem do Guarany de Sobral, que não pouca ninguém e por aí vai...
o Tupinambá, que é apelidado de Babá, é um humorista de primeira. Todos são figuras especiais do becco...
Beth Rebouças, jornalista

 

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